Brasileira deu apoio em epidemia de ebola: ‘energia vem dos sobreviventes’

Publicado em: 21 outubro 2014 ás 11:59:16

A psicóloga paulistana da organização Médicos sem Fronteiras (MSF) Julia Bartsch voltou para o Brasil há 21 dias, depois de trabalhar durante duas semanas na Guiné e na Libéria, onde há transmissão intensa de ebola. Na África Ocidental, ela deu suporte psicológico a profissionais do MSF de várias partes do mundo que tratam pacientes infectados pelo vírus.

Em entrevista ao G1, ela contou sobre as principais dificuldades enfrentadas pelos membros da organização, que encaram jornadas de trabalho de mais de 12 horas diárias, não têm fim de semana e lidam com a morte diariamente. Leia os principais trechos da entrevista:

Você deu suporte psicológico aos membros do MSF em Conacri,  na Guiné, e em Monróvia, na Libéria. Quais as principais preocupações desses profissionais?
Em geral, são os cuidados diários para seguir o procedimento e não ser infectado. Ninguém pode se tocar em momento algum. A última coisa que se quer é ficar doente. E também o cansaço. Muitos deles relataram muito cansaço e excesso de trabalho. Tem poucas organizações que estão atuando nesses países. Isso tem muito a ver com o pedido que o MSF tem feito para que os estados possam intervir com profissionais qualificados que possam atuar nesses países.

E também a questão de lidar com a morte constantemente. De cada 10 pacientes, mais ou menos 6 acabam morrendo. É uma carga de trabalho bastante pesada, por isso eles ficam de 1 a 2 meses, caso contrário não seria possível aguentar.

Ver tantos pacientes morrendo impacta os profissionais de que maneira?
De um lado, é um pouco o que a gente acaba esperando. Muitos pacientes chegam já em estado avançado da doença, o que acaba dificultando o tratamento. Num primeiro momento, é bastante frustrante para os profissionais. O que dá energia são as pessoas que sobrevivem. A cada 10 pacientes, estamos falando de 4 pessoas que sobreviveram. Então quando a gente vê uma pessoa saindo da área de isolamento, podendo ser parabenizado pela vitória de ter sobrevivido, é isso o que dá energia.

São justamente essas pessoas que sobrevivem que são a representação da luta contra o ebola. Teve um caso de um bebê de três meses que perdeu os pais, que faleceram por conta do ebola. Os profissionais do MSF conseguiram salvar o bebê. As pessoas estavam em volta da criança como se fosse uma esperança, que uma criatura tão frágil, tão pequena consiga sobreviver.

O que os profissionais fazem enquanto não estão nos centros de tratamento?
A jornada de trabalho pode chegar a 12 horas ou até mais. Não ficam o tempo inteiro com os pacientes, têm também reuniões para ver o que tem de ser feito. Eles não têm fim de semana. Os profissionais ficam todos alojados no mesmo local ou em casas diferentes, mas não existem coisas externas para se fazer. Essas pessoas acabam criando uma equipe muito forte de ajuda mútua. Quando não estão trabalhando, é o momento de estarem juntos, conversarem sobre outras coisas. Ninguém pode se tocar, então os profissionais acabam criando outros mecanismos de aproximação.

Como os profissionais lidam com o risco de eles próprios se infectarem?
Dentro da nossa estrutura do MSF, há mais de 3.200 pessoas trabalhando. A gente costuma dizer que o nosso centro de tratamento é o lugar mais seguro da cidade, onde tudo é feito para que se reduza ao máximo o nível de contaminação. Infelizmente, o risco nunca é zero. Das 3.200 pessoas, sem contar as que já passaram pelos centros, 21 pessoas foram contaminadas e 12 faleceram. É um índice muito baixo perto de outras estruturas.

Nas cidades por onde passou, de que forma a epidemia afetou o estado de espírito da população?
O que eu consigo ver é que as pessoas tentam manter uma vida cotidiana. Até por questões econômicas, tentam manter o comércio, com alguns cuidados, por exemplo, para que as pessoas lavem as mãos. São procedimentos mínimos que são feitos dentro da cidade.

Os hospitais na Libéria estão vazios porque parte dos profissionais morreu ou está com medo. A estrutura de saúde está bastante crítica, as pessoas estão morrendo de outras doenças, como malária, porque estão sem assistência.

Posso falar que o que mais impacta é o que a gente vê na porta do centro de tratamento do MSF. Vi uma menina de 10 anos que foi abandonada pela família, com comida e água. Abandonada porque a comunidade está forçando as famílias a se livrar dos doentes. Isso é uma coisa muito incomum no contexto africano, onde existe um cuidado com a criança muito grande, onde a vida em comunidade é muito importante. Quando uma criança é abandonada por pressão da comunidade, isso mostra que socialmente o ebola está afetando a vida em comunidade.

O que mais marcou você nesse período?
Essa contradição entre o que é muito difícil de se ver – como crianças sendo abandonadas, muitas mortes – e, ao mesmo tempo, o que fica do outro lado – o trabalho todo que se faz para as pessoas que vão sobreviver. É bonito ver as pessoas que sobrevivem, saem da área de isolamento, recebem roupa nova, certificado de que estão curadas, e são recebidas com aplausos do lado de fora. É isso que acaba segurando, dando energia para continuar esse trabalho. A gente vê muita coisa triste, mas consegue ver resultado.

Como a população dessas cidades recebe os profissionais do MSF?
Nos lugares onde o MSF atua há bastante tempo, existe uma aceitação muito positiva. Eles reconhecem quando os profissionais chegam para o tratamento.

O que motiva os profissionais a irem para áreas com tanto risco de transmissão?
A motivação humanitária, de salvar vidas, é a principal. Quem trabalha no MSF tem isso muito forte: tentar salvar o máximo de pessoas possível. Uma coisa que infelizmente está muito forte é o preconceito. É preciso lembrar que não é porque uma pessoa é desses países que ela tem ebola. Vamos lembrar que o ebola não escolhe país, raça, nem nada. O vírus pode atingir qualquer pessoa. O cuidado não é simplesmente fechar fronteiras. É importante que as pessoas saibam, se tiver alguém chegando desses países, qual estrutura vai atender. É preciso estar informado, preparado, procurar maneira para atender essas pessoas sem preconceito.

 

Fonte: G1